Rita Lee, irreverente autora de hits eternos e padroeira da liberdade, nos deixa aos 75 anos
Diagnosticada com câncer de pulmão desde 2021, Rita Lee, 75 anos, morreu no final da noite de 8 de maio, “cercada de todo amor e de sua família, como sempre desejou”, diz o comunicado que os familiares postaram nas redes sociais da cantora. O governo federal decretou luto oficial por três dias. O público que foi se despedir dela pôde ver como era o céu no dia em que Rita nasceu (31 de dezembro de 1947), numa homenagem do Planetário do Parque Ibirapuera, em São Paulo, onde o velório se deu. De acordo com a vontade da cantora, compositora e ativista, seu corpo será cremado, numa cerimônia particular. Rita Lee deixa o marido, Roberto de Carvalho, e três filhos – Beto, de 45 anos; João, de 44; e Antônio, de 42.
Filha mais nova de um dentista americano e uma dona de casa de descendência italiana, Rita Lee Jones de Carvalho nasceu na capital paulista. Ainda adolescente, deixou a vida sossegada no bairro da Vila Mariana ao ser conquistada por “esse tal do rock and roll”. Em 1966, passou a fazer parte do grupo Os Mutantes como vocalista, ao lado dos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, permanecendo no grupo até 1972, depois pela banda Tutti Frutti (1973-1978) até que se lançou na carreira solo, com grande sucesso radiofônico.
Rita era fã do rock inglês e norte-americano, mas também acompanhava as tendências musicais brasileiras. Ela era praticamente uma síntese de brasilidade e cosmopolitismo, numa época em que a bossa nova reinava e a guitarra elétrica era mal vista.
Em 1967, Os Mutantes acompanharam Gilberto Gil no III Feastival de Música Popular da Record na música Domingo no Parque, entrando no Tropicalismo. De repente, a menina meio-americana, ruiva e de sardas, parecia ter tudo a ver com o movimento, que começava a tomar forma nas mentes de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil.
“Foi muito forte pra mim aquilo. Finalmente conheci meu lado brasileiro. É isso. É uma mistura de tudo, eu sou uma mistura de tudo. Eu sou mais brasileira do que Pelé… Ou tanto quanto Pelé… Ou tão brasileira quanto o Geraldo Vandré…. A minha cabeça fez nhóoooin…”, disse a artista*.
A saída do grupo Os Mutantes foi conturbada. “Eu fui expulsa dos Mutantes. Foi triste. Sofri pra xuxu. Aí fiz uma letra. E a gente gravou o disco, tudo, mas eu não conseguia cantar a música”.
“Kiss baby, pena que você não me quis, não me suicidei por um triz, ai de mim que sou assim”, diz a letra de Mutante. A artista, no entanto, logo voltou a cantar acompanhada pela Banda Tutti Fruti. Nessa época, em plena ditadura, teve canções censuradas e chegou a ser presa, em 1976, quando estava grávida do primeiro filho.
O sucesso absoluto viria na parceria com o marido Roberto de Carvalho. Nos anos 1980, seus álbuns venderam milhões de cópias, com hits eternos como Lança Perfume e Baila Comigo, Flagra, Doce Vampiro e tantos outros.
Pela floresta e pelos povos indígenas
Além da música, Rita se engajou em causas importantes. Nos anos 1990, foi uma das primeiras vozes a se levantar pela preservação da Floresta Amazônica e pelos direitos dos povos indígenas.
“Por favor, vejam o que significa um decreto em favor dos índios. Não é nada paternalista, caridade. É respeito à raça humana. É pensar no futuro. Estamos quase no final do milênio, está na hora de fazer essas coisas”, declarou*.
Na última década, Rita Lee foi se afastando aos poucos dos holofotes. O último álbum de estúdio foi lançado em 2012, e o último show foi em 2013, no aniversário de São Paulo. Durante a pandemia, chegou a fazer uma apresentação online com o marido Roberto de Carvalho.
Em 2021, lançou a canção Change, em francês, e também foi homenageada com uma grande exposição no Museu da Imagem e do Som, na capital paulista. Neste mesmo ano, quando foi diagnosticada e começou a tratar um câncer de pulmão, suas aparições foram se tornando ainda mais raras.
A irreverência, sua característica mais marcante, a fez rejeitar o título de Rainha do Rock brasileiro. No fim do ano passado, em entrevista à revista Rolling Stone Brasil, Rita confessou que considerava o apelido cafona. Disse preferir ser conhecida como Padroeira da Liberdade.
Camaleoa, foi muitas e foi única: de Miss Brasil 2000 a Todas as Mulheres do Mundo. Embora nenhum título possa dar conta de Rita Lee, que ela nos permita, hoje, saudá-la rainha. Salve!
A ditadura acabou, mas a censura não
Rita Lee foi uma das artistas mais censuradas durante a ditadura militar no Brasil, segundo a pesquisadora Norma Lima, doutora em literatura e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “Nas minhas pesquisas, eu verifiquei isso, encontrei várias letras dela que tinham sido censuradas, e é uma censura de costumes, não é uma censura só política”.
Evidência disso é que a artista sofreu censura mesmo após o período de repressão no país. “Quando a ditadura acabou, ela continua a ser censurada, ela foi censurada em um disco de 1988 que é Pega Rapaz, a letra foi censurada: de “frente e de trás eu te amo cada vez mais”, lembrou.
Entre os casos de censura no que se refere a costumes e que trazem questões de sexualidade, Lima apontou Lança Perfume e Cor-de-rosa choque. “Mas ela também teve letras que criticavam os políticos, como Arrombou o cofre, essa que foi uma faixa riscada [o disco foi vendido com a faixa riscada], e ela falava da corrupção no Brasil, dos escândalos, isso foi denunciado por ela nessa música”, continua a pesquisadora.
“O fato de ser mulher já a coloca como uma pessoa perseguida dentro do patriarcado. E uma mulher ousada, ela só foi presa porque ela era ousada, porque ela rompia. Se você olhar o comportamento da mulher nos anos 60, compara com a Rita, ela não ficava em caixinha. Ela falava o que pensava, uma pessoa inteligente, que sabia se expressar, e ela realmente foi muito perseguida por causa disso”, diz.
Rita Lee foi diversas vezes definida por estereótipos relacionados a drogas, enquanto tinha carreira e atuação relevantes, uma figura de vanguarda em diversas questões. De acordo com a pesquisadora, o primeiro beijo gay em TV aberta foi apresentado em um clipe de Rita Lee, em “Obrigado não”, no programa de TV Fantástico. A canção aborda diversos assuntos considerados tabu até hoje.
A pesquisadora citou a canção Ambição como representativa da artista e da sua carreira. “Tem uns versos no final em que ela diz assim: ‘eu quero matar a vontade enquanto tenho saúde e idade, fazer um pouco de tudo, vender a alma para poder comprar o meu mundo‘. Ela é uma pessoa que criou o mundo dela, mas é um mundo extensivo a tanta gente. Eu acho que ela mudou muita coisa, ela realmente transformou. Era uma pessoa inquieta, não era uma pessoa acomodada, ela quis um outro mundo, uma outra realidade”, acrescentou.
Lima avalia ainda que Rita Lee modernizou a música brasileira e que trouxe contribuições diversas: “ela colocou o Brasil de uma forma muito futurista. A mensagem da Rita não é datada, pertence a todas as épocas. Na época dos Mutantes, ela era o colorido, a graça do grupo. Quando ela foi cantar com Tutti Frutti, ela pegou as letras, que eram em inglês, e deu uma qualidade muito grande para as letras em português, tinham mensagens. Depois, me parece que ela abriu muito caminho para as cantoras, ela foi uma mulher ousada nos anos 70 dentro da repressão, como uma mulher que realmente abriu os caminhos para as que vieram depois”, finaliza a pesquisadora.