UFMG atesta autenticidade de imagem de São Francisco de Assis atribuída a Aleijadinho
Especialistas do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor) conduziram os trabalhos. Imagem foi devolvida com festa à Igreja de São Caetano, em Cipotânea, na Zona da Mata mineira
Para um desavisado, a cerimônia religiosa realizada naquela quarta-feira na Igreja de São Caetano, em Cipotânea, na Zona da Mata mineira, poderia ser apenas mais uma entre as tantas que são realizadas semanalmente na paróquia. Contudo, naquele 19 de abril, não havia desavisados na nave: todos sabiam o quão especial era a ocasião e aguardavam com ansiedade a chegada do grande personagem da noite.
Não demorou para que uma procissão avançasse pelo corredor central, formada por coroinhas, ministros e demais acólitos, atrás dos quais, puxando uma compungida Ave Maria, iam os celebrantes da igreja – entre eles, o padre Rogério Venâncio Resende, que atua há mais de 50 anos na paróquia. Atrás deles, por fim, quatro homens avançavam com uma padiola, em que se impunha o protagonista da celebração: uma imponente imagem de São Francisco de Assis Penitente, o frade italiano que, entre os séculos 12 e 13, renovou o catolicismo do seu tempo, ao pregar uma vida religiosa itinerante e desprendida de posses.
À medida que a imagem avançava, algumas pessoas faziam o sinal da cruz, enquanto outras estendiam as mãos, na esperança de tocar o hábito do santo, que vestia a sua tradicional túnica marrom sobreposta por uma esclavina com capuz. Enlaçado em sua cintura, um cordão de três nós, simbolizando os seus votos de pobreza, obediência e castidade. Sobre a mão esquerda, uma caveira, lembrança de que o santo não via a morte como inimiga, mas como uma irmã da vida humana; na cabeça, sobre a tonsura, um imponente resplendor, reiterando sua santidade.
Logo irrompeu uma forte salva de palmas, se sobrepondo às orações. O padre então dizia, ao microfone: “São Francisco de Assis”, ao que a comunidade respondia: “Rogai por nós!”, e assim, por três vezes, como manda a tradição. Quando a procissão finalmente alcançou as escadas do presbitério, os condutores do andor manobraram para que a imagem restasse de frente para os fiéis – tudo com o mais lento cuidado, como manda o ditado, ainda que aquela imagem não fosse de barro, mas de jatobá. Quando parou em frente ao altar, a imagem foi outra vez aclamada, em uma exultação coletiva.
Aquela seria uma celebração normal para tal ambiente religioso, não fosse um detalhe: após décadas de expectativa, aquela imagem de São Francisco de Assis Penitente de quase um metro e meio de altura, integrante tão antigo do acervo da paróquia, tinha finalmente sido reconhecida e autenticada, por uma instituição técnica autônoma, de credibilidade e competência notórias, como uma produção do escultor, arquiteto e entalhador Antonio Francisco Lisboa (1730/1738-1814), o Aleijadinho, o grande nome do barroco brasileiro.
Na ocasião, celebravam-se a devolução da imagem e sua reintegração ao acervo da paróquia, após a certificação da sua autenticidade pelo Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor) da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, trabalho que foi realizado sob a coordenação do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Após a missa, a imagem seria instalada em uma edícula construída especialmente para abrigá-la, no corredor lateral do salão dos fiéis, para reassumir a sua função devocional.
Devagar com o andor
A suspeita de que havia um autêntico Aleijadinho escondido entre as tantas esculturas da paróquia de São Caetano, em Cipotânea, no interior de Minas Gerais, era um boato que corria entre a comunidade da região desde os imemoriais tempos do distrito de São Caetano do Xopotó (elevado à categoria de paróquia em 1857, o local receberia o nome de “Cipotânea” em 1938; já a emancipação de Rio Espera só viria no início da segunda metade do século 20), ainda que não houvesse clareza sobre qual seria a imagem de autoria do famoso escultor, entre as tantas da paróquia.
As dúvidas começaram a ser esclarecidas quando a imagem de São Francisco Penitente foi encaminhada, em 2016, para o Cecor, para ser restaurada no âmbito do Projeto Extramuros, que na época era coordenado pela professora Bethania Veloso, diretora do Centro na gestão 2015-2020. Bethania se aposentaria no fim daquele ciclo, mas seguiu atuando no projeto como professora colaboradora, de modo que conseguiu testemunhar a conclusão do trabalho. A atribuição de autoria feita à obra de Aleijadinho foi a primeira da história do Cecor.
Financiado pelo Ministério Público (a verba foi viabilizada por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta de uma mineradora), o Projeto Extramuros consistiu na conservação e/ou restauração de 24 esculturas de diversas cidades de Minas Gerais – entre elas, o potencial Aleijadinho que animava as esperanças dos devotos da cidade dos cipós. A imagem era procedente da Capela de Bom Jesus da Paciência, distrito de Cipotânea. Curiosamente, antes de ser enviada para o Cecor, ela estava guardada em uma sala do subsolo da residência paroquial, sem ocupar local sagrado na igreja nem exercer função devocional.
As várias etapas da atribuição
Encaminhada ao Cecor, a autenticidade pôde finalmente ser comprovada após um diligente – e consequentemente longo – trabalho de reconhecimento. “Para fazer uma atribuição, primeiro é necessário estudar tudo que já foi escrito sobre o artista. É o que chamamos de revisão da literatura”, introduz Alessandra Rosado, professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes e atual diretora do Cecor. Em seguida, ela explica, faz-se um levantamento do cânone do artista, para só então começar o trabalho de comparação minuciosa, com base na história da arte. “Nesse trabalho, vamos observar os detalhes: a forma de fazer o cabelo, os olhos, a orelha, o nariz, a boca, a barba.” A busca, nesse caso, é por traços em comum entre o cânone documentado e a obra que está sendo estudada.
Alessandra explica que também costumam ser feitos estudos de materiais e técnicas utilizadas, com base nos produtos e nos modos típicos de produção da época. Aqui, ela se refere à madeira utilizada para o trabalho, à técnica de esculpir, ao tipo de tinta. “Exames como a radiografia, por exemplo, permitem examinar a obra em sua estrutura, para que ela possa ser comparada com outras obras documentadas”, afirma. Se, após tudo isso, a autoria continua sendo pertinente, faz-se finalmente a atribuição, um processo que é sustentado pela credibilidade da instituição e dos profissionais que a realizam.
“O método de trabalho primou pela interdisciplinaridade, com pesquisas nos campos da história, história da arte, iconografia, ciências da conservação e principalmente abordando a ética e os critérios de restauração da escultura, para garantir um trabalho de excelência”, anota-se no relatório que autentica a autoria. “Todos os exames realizados foram importantes para avaliar a originalidade da escultura, demostrando que, em seus aspectos materiais e técnicos, se trata de uma obra com características compatíveis com o final do século 18, descartando possibilidade de um falso”, registra-se.
A conclusão apresentada no documento é a de que a imagem foi produzida por Aleijadinho entre os anos de 1790 e 1792, na própria região onde estava depositada. Documentos comprovam que o escultor viveu em Rio Espera no período, quando trabalhava no retábulo-mor da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto. Na época, Rio Espera era administrativamente responsável por Cipotânea. As cidades ficam a apenas 13 quilômetros de distância.
Essa presença do escultor na região explica-se com mais de uma resposta. De um lado, historiadores registram um eventual interesse em tratar de sua saúde por ali. De outro, suspeita-se que, na época, Aleijadinho tenha precisado afastar-se de Vila Rica para dissuadir questionamentos sobre a sua ligação com os conspiradores do movimento inconfidente.
“Também não podemos desconsiderar que, na região, havia fartura de madeira de qualidade para confecção do retábulo, já que, de acordo com os documentos, o trabalho do retábulo de São Francisco de Assis de Ouro Preto teve início em Espera. Há três obras atribuídas a Aleijadinho com origem em Rio Espera: São José de Botas, Bom Jesus da Paciência e Nossa Senhora da Piedade, padroeira local”, registra-se no relatório.
A Aleijadinho o que é de Aleijadinho
Mas, afinal, o que permitiu a certificação da imagem de Cipotânea como uma produção de Aleijadinho? Uma série de fatos, de ordem estética, histórica e material, que foram listados em um relatório técnico de atribuição de 80 páginas, produzido pela equipe do Cecor (o relatório de restauração tem outras 75 páginas). No documento, detalha-se a técnica construtiva da imagem, o seu estado de conservação e os resultados das análises científicas que foram feitas, como radiografia, análise de madeira e exames laboratoriais.
“As radiografias, por exemplo, foram importantes não só para visualizar as perdas da carnação [cor da pele] original, mas também para encontrar os estilemas de Aleijadinho encobertos pelas repinturas”, explica o professor Luiz Antonio Cruz Souza, do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes. Vice-diretor do Cecor, Cruz Souza foi um dos profissionais da Belas Artes que trabalharam na autenticação.
Texto de Ewerton Martins Ribeiro, da Agência de Notícias UFMG
Mestre e doutor em química, ele atuou com particular ênfase nas análises físico-químicas da imagem, trabalho em que foram examinadas amostras de diferentes partes da escultura. Essas análises resultaram em laudo técnico específico, de 11 páginas, que se soma ao relatório principal como anexo (além dele, há uma série de outros laudos, como de identificação da madeira e da fibra do cordão encontrado originalmente junto à imagem). Outro ponto chave para a autenticação foram os citados estilemas de Aleijadinho.
“Estilemas são os traços do artista”, explica Alessandra Rosado. “É uma marca pessoal, que, de fato, transparece em seu trabalho.”