No SESC Guarulhos, coletiva questiona o que é ser negro e indígena nos dias de hoje
O que significa ser negro e ser indígena no mundo contemporâneo? A pergunta ecoa e funciona como um elo entre as obras da instalação Terra de Gigantes, com concepção e curadoria de Daniel Lima, que ocupa o Sesc Guarulhos entre 30 de março e 03 de setembro de 2023. A mostra propõe uma experiência imersiva coletiva cujo aparato tecnológico foi desenvolvido para garantir uma vivência interativa singular ao espectador.
Daiara Tukano, Davi Kopenawa Yanomami, Denilson Baniwa, Jonathan Neguebites, Jota Mombaça, Juçara Marçal, Katú Mirim, Legítima Defesa, Marcelino Freire, Naná Vasconcelos e Naruna Costa compõem o time de artistas e coletivos convidados que atualizam a visão de nação brasileira a partir da experiência de ser um corpo negro e indígena no país. “Terra de Gigantes tem como proposição cruzar essas gerações de artistas negros e indígenas para questionar um ideário brasileiro contemporâneo, reivindicando outra imagem de Brasil, não aquela criada pelo Modernismo a partir da perspectiva branca”, explica Lima.
Pensada a partir das memórias dos parques temáticos – trem fantasma, labirinto de espelhos, montanhas e rodas –, Terra de Gigantes propõe um jogo de proporções em que o visitante é reduzido ou ampliado diante de projeções em diferentes escalas. Às vezes gigante, às vezes minúsculo, o público é constantemente convidado a interagir com os artistas que, em cada obra, se tornam personagens desse percurso construído como um longa de ficção, num passeio através de cenas que, juntas, compõem uma ambiência fantástica.
Um dos corações da mostra, Davi Kopenawa Yanomami, liderança ianomâmi e autor do livro “A queda do Céu”, aguarda seu interlocutor antes de se apresentar gigantescamente em cena. Em sua obra, ele fala ao espectador sobre a força de resistência que existe não só em sua figura, mas na cultura do povo ianomâmi que, simbolicamente, através da dança de seus xamãs, garante que o céu permaneça sobre nossas cabeças e não caia. Em Terra de Gigantes, a imensa figura de Kopenawa, projetado em escala aumentada de 800%, aborda temas sensíveis e atuais, como a dimensão atual da crise ianomâmi e o projeto de civilização que se construiu a partir de um progresso destrutivo.
Daiara Tukano, artista que pesquisa o direito à memória dos povos indígenas, expõe dez pinturas da série “Kahpi Hori” que, em Terra de Gigantes, deixam o suporte da tela e ganham animação em formato tridimensional. Nesta sala de imersão visual e sonora de imensas dimensões (3m x 3m x 3m), Tukano instaura um outro tempo de miração dentro da exposição, operando como um mergulho no universo simbólico de uma das expressões da arte indígena contemporânea brasileira. Imerso em um cubo com projeções mapeadas nas paredes e no piso, e sonorizado com cantos entoados pela própria artista, o espectador vivencia uma experiência que sugere visões alcançadas por meio do caapi (ayahuasca), a medicina de origem de todo o conhecimento, história, língua, cantos e desenhos do povo Tukano.
Jonathan Neguebites, dançarino da 1a geração do passinho carioca, explora essa manifestação cultural e periférica ligada às batidas mais maduras do funk enquanto dança ao som vocal de Juçara Marçal, expoente da renovação da música popular brasileira. Aos dois, junta-se música de Naná Vasconcelos (1944 – 2016), papa da percussão.
Naruna Costa, atriz, diretora e musicista, dialoga com a obra do escritor Marcelino Freire, interpretando o texto “Da paz”, que ganhou notoriedade em slams e competições de poemas ao falar sobre uma mãe que teve um filho morto pela polícia e se recusa a ir em uma manifestação pela paz. Costa é mais uma gigante da mostra, interpretando uma figura materna que simboliza a revolução por um novo Brasil que somente as mães de filhos que sofreram violências podem convocar.
Ao todo, são 11 cenas audiovisuais que, entre diferentes caminhos poéticos, como textos, músicas, performances, entrevistas e animações, examinam os significados sobre ser negro e ser indígena no mundo contemporâneo, abrindo espaço para se pensar o amanhã a partir de referenciais plurais. É o aparato tecnológico desenvolvido para a instalação que garante a experiência imersiva em um universo onde as forças poéticas e mitológicas da cultura afro-ameríndia são evocadas através de sons, luzes e imagens.
Terra de Gigantes ocupa o espaço expositivo do Sesc Guarulhos, uma área com cerca de 450m2, na qual o visitante fará uma experiência vivencial de pelo menos 45 minutos, embalada pelo tema Africadeus, de Naná Vasconcelos, música incidental que amarra toda a instalação. A exposição cria uma nova obra musical, na qual o próprio Naná, Juçara Marçal e Daiara Tukano mesclam berimbau e vozes em diferentes canais, numa colagem que origina uma ópera musical afro-indígena.
SOBRE O CURADOR
Daniel Lima, Natal, 1973
Daniel Lima é artista, curador, editor e pesquisador. Bacharel em Artes Plásticas, Mestre em Psicologia Clínica e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo e membro do laboratório LabArteMídia. Desde 2001, cria investigações-ações em pesquisas relacionadas à mídia, questões raciais, resistências coletivas, presente colonial e análises geopolíticas. Membro fundador de diversos coletivos, entre eles, a Frente 3 de Fevereiro com trabalhos desenvolvidos em várias cidades do mundo. Recebeu diversos prêmios nas áreas de Artes Visuais, Cinema e Estudos Sociais – recentemente agraciado com o 64º Prêmio Jabuti (2022) como editor na categoria “Artes”. Participou de diversas exposições, festivais e seminários nacionais e internacionais. Dirige a produtora e editora Invisíveis Produções (https://issuu.com/invisiveisproducoes).
SOBRE OS ARTISTAS:
Daiara Tukano
Daiara Hori Figueroa Sampaio – Duhigô, do povo indígena Tukano – Yé’pá Mahsã, clã Eremiri Hãusiro Parameri do Alto Rio Negro na amazônia brasileira, nascida em São Paulo. Artista, ativista, educadora e comunicadora. Graduada em Artes Visuais e Mestre em direitos humanos pela Universidade de Brasília – UnB; pesquisa o direito à memória e à verdade dos povos indígenas. Foi coordenadora da Rádio Yandê, primeira web-rádio indígena do Brasil – www.radioyande.com de 2015 à 2021. Ganhadora do Prêmio PIPA Online 2021, organizado pelo Instituto PIPA como mais relevante prêmio brasileiro de artes visuais. Estuda a cultura, história e espiritualidade tradicional de seu povo junto à sua família. Reside em Brasília, DF.
Davi Kopenawa Yanomami
Liderança reconhecida internacionalmente em sua luta pela defesa do território. Foi tradutor e chefe de posto da Funai (Fundação Nacional do Índio). Na década de 1970, percorreu a área ianomâmi em função de diversos trabalhos, tomando consciência de sua extensão e de sua unidade cultural. No auge da invasão garimpeira, engajou-se na luta pela demarcação do seu território, junto da CCPY (Comissão pela Criação do Parque Ianomâmi), numa campanha que durou cerca de 14 anos. Por sua atuação, recebeu o prêmio global 500 da ONU e diversas outras homenagens nacionais e internacionais, como o prêmio Itaú Cultural 30 anos, em 2017. É doutor Honoris-Causa pela Unifesp, outorgado em março de 2023. Autor do livro “A Queda do Céu”, é codiretor do documentário experimental “Xapiri”, e assina o roteiro do filme “A última Floresta” em parceria com Luis Bolognesi.
Denilson Baniwa
Nasceu em Mariuá, Rio Negro, Amazonas. É artista visual e comunicador que tem, a partir do Movimento Indígena Amazônico e trânsito pelo universo não-indígena, seus processos artísticos e sociais. Às vezes o desafio não é ocupar posições. Por exemplo, quando as que existem não servem, é necessário criar algo novo. Denilson Baniwa é um artista indígena; é indígena e é artista, e seu ser indígena lhe leva a inventar um outro jeito de fazer arte, onde processos de imaginar e fazer são por força intervenções em uma dinâmica histórica (a história da colonização dos territórios indígenas que hoje conhecemos como Brasil) e interpelações a aqueles que o encontram a abraçar suas responsabilidades.
Jonathan Neguebites
Cria de Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, Neguebites conquistou o Brasil e o mundo com a sua dança. O dançarino e professor ficou conhecido em 2016, quando começou a ganhar suas primeiras Batalhas de Passinho, tendo sido campeão de 4 delas: Batalha da Flupp, Batalha do Batan, Desafio do Passinho e Hip Funk Festival. Foi na época das suas primeiras batalhas que foi convidado a participar de um evento do Heavy Baile e, depois disso, nunca mais saiu: hoje ele é um dos artistas que compõem o coletivo de funk carioca.
Jota Mombaça
Artista e escritora indisciplinar cujo trabalho deriva de poesia, teoria crítica e performance. Sua prática está relacionada à crítica anticolonial e à desobediência de gênero. Através da performance, da ficção visionária e de estratégias situacionais de produção de conhecimento, pretende ensaiar o fim do mundo tal como o conhecemos e a figuração do que vem depois de desalojarmos o sujeito colonial-moderno de seu pódio. Já apresentou trabalhos em diversos contextos institucionais, como as 32ª e 34ª Bienal de São Paulo, 10ª Bienal de Berlim, 22ª Bienal de Sydney e 46ª Salão Nacional de Artistas da Colômbia. É autora do livro “Não vão nos matar agora”, publicado em Portugal em 2019 pela EGEAC e no Brasil em 2021 pela Editora Cobogó.
Juçara Marçal
Cantora do grupo Metá Metá. Integrou os grupos Vésper Vocal, A Barca e Ilu Obá De Min. Lançou em 2014 o disco solo “Encarnado”. O álbum ganhou o Prêmio APCA – Melhor Álbum de 2014, Prêmio Governador do Estado – Melhor Álbum – Voto do Júri, e Prêmio Multishow de Música Compartilhada, entre outros. Em 2015, lançou “Anganga”, parceria com o músico carioca Cadu Tenório. Com Rodrigo Campos e Gui Amabis, criou o projeto “Sambas do Absurdo”, inspirado no livro de Albert Camus, “O mito de Sísifo”. Realiza, ao lado de Kiko Dinucci e Thais Nicodemo, o show Brigitte Fontaine, em que canta o repertório dessa artista. Em 2019 estreou como atriz na peça “Gota d’água {Preta}”. Em 2021 lança seu segundo disco solo, “Delta Estácio Blues”.
Katú Mirim
Mulher lésbica, indígena, rapper, compositora, atriz e criadora de conteúdo, reconhecida por suas letras, que através do rap/rock, reconta a história da colonização pela ótica indígena. Sua arte e conteúdos são sobre as temáticas que atravessam sua vida, identidade, gênero, lesbianidade e maternidade. Sempre fazendo o recorte entre o futuro e a ancestralidade, ela traz uma visão decolonial sobre o futurismo e a tecnologia. O futuro só pode ser ancestral.
Legítima Defesa
Grupo de artistas, atores e atrizes, dj’s e músicos, de ação poética, portanto política, que tem como foco a reflexão e representação da negritude, seus desdobramentos sociais históricos e seus reflexos na construção da persona negra no âmbito das linguagens artísticas. Constituindo, desta forma, um diálogo com outras vozes poéticas que tenham a negritude como tema e pesquisa. Formado em 2015, o coletivo Legítima Defesa apresentou a performance poético-política “Em Legítima Defesa” na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo de 2016. Em 2017, estreou o espetáculo “A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa” na programação da Mostra Internacional de Teatro. Tem em sua bagagem uma série de intervenções urbanas, como “Racismo é Golpe?” e “Um rosto à procura de um nome”. Em 2019 estreou o espetáculo “Black Brecht – E se Brecht fosse negro?” projeto contemplado pelo Prêmio Zé Renato, considerado pelo guia da folha como um dos mais relevantes do ano de 2019. Em 2022 estreou sua mais nova peça “Améfrica: em Três Atos” também contemplado pelo Prêmio Zé Renato.
Marcelino Freire
Escritor, nasceu em 1967, em Sertânia, Pernambuco. Viveu no Recife e desde 1991 reside em São Paulo. É autor, entre outros, dos livros “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial) e “Contos Negreiros” (Editora Record – Prêmio Jabuti 2006). Em 2004, idealizou e organizou a antologia de microcontos “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século” (Ateliê). Alguns de seus contos foram adaptados para teatro. Participou de várias antologias no Brasil e no exterior. “Contos Negreiros” foi publicado em 2013 na Argentina, pela Editora Santiago Arcos e com tradução de Lucía Tennina, e no México, pela Librosampleados, com tradução de Armando Escobar. Criou a Balada Literária, evento que acontece em São Paulo desde 2006, com edições em Teresina (desde 2017) e Salvador (desde 2015). No final de 2013, publicou seu primeiro romance, intitulado “Nossos Ossos” (Record – Vencedor do Prêmio Machado de Assis), publicado também na Argentina, pela editora Adriana Hidalgo, na França pela editora Anacaona, e em Portugal pela editora Nova Dheli. Em 2018, lançou pela José Olympio, o livro “Bagageiro”, que reúne o que ele chama de “ensaios de ficção”. Coordena oficinas de criação literária desde o ano de 2003.
Naná Vasconcelos
Nasceu no Recife. Dotado de uma curiosidade intensa, indo da música erudita do brasileiro Villa-Lobos ao roqueiro Jimi Hendrix, Naná aprendeu a tocar praticamente todos os instrumentos de percussão, embora nos anos 60 tenha se especializado no berimbau. Depois das mais variadas experiências musicais, mudou-se para o Rio de Janeiro e começou a trabalhar com Milton Nascimento. Em 1970, o saxofonista argentino Gato Barbieri o convidou para juntar-se ao seu grupo. Apresentaram-se em Nova York e Europa, com destaque para o festival de Montreaux, na Suíça, onde o percussionista encantou público e crítica. Ao término da turnê, fixou residência em Paris, França, durante cinco anos, onde gravou o seu primeiro álbum – “Africadeus” (71). No Brasil, Naná gravou o seu segundo disco “Amazonas” (72). Começou, então, uma bem-sucedida parceria com o pianista e compositor Egberto Gismonti, durante oito anos, que resultou em três álbuns – “Dança das Cabeças”, “Sol do Meio-Dia” e “Duas Vozes”. De volta a Nova York, formou o grupo “Codona”, com Don Cherry e Colin Walcott, também gravando e fazendo turnê com a banda do guitarrista Pat Metheny. Trabalhando com artistas das mais variadas tendências, Naná Vasconcelos gravou com B.B. King, com o violinista francês Jean-Luc Ponty e com o grupo de rock americano Talking Heads, liderado por David Byrne. Em 1986, de volta ao Brasil depois de dez anos, fez turnê recebida com entusiasmo pelo público. Nessa altura, Naná já havia trabalhado nas trilhas dos filmes “Procura-se Susan Desesperadamente”, de Susan Seidelman, estrelado por Rosanna Arquette e Madonna, e “Down By Law”, do cultuado diretor Jim Jarmusch, além de “Amazonas”, de Mika Kaurismaki. O trabalho de Naná sempre demonstrou a amplitude do seu talento, e nos anos 80 gravou o disco “Saudades”, concerto de berimbau e orquestra. Depois, vieram os álbuns “Bush Dance” e ‘Rain Dance”, suas experiências com instrumentos eletrônicos. Daí por diante, Naná esteve envolvido mais diretamente com o cenário musical brasileiro ao fazer a direção artística do festival Panorama Percussivo Mundial (Percpan), em Salvador, e do projeto ABC Musical, além de participações especiais em álbuns de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Marisa Monte e Mundo Livre S/A, entre outros. Em meio a inúmeros lançamentos fora do país, Naná Vasconcelos lançou no Brasil o disco “Contando Estórias” (94), depois os CDs “Contaminação” e “Minha Lõa”. No fim de 2005, lançou “Chegada”, pela gravadora Azul Music, e em 2006, o CD mais recente, intitulado “Trilhas”. Com raízes pernambucanas, Naná idealizou o projeto ABC das Artes Flor do Mangue, trabalho com crianças carentes. Uma trajetória de vida que esbanja virtuosismo musical e integridade pessoal em tudo o que faz e toca. Informações mais detalhadas sobre o artista podem ser encontradas no site.
Naruna Costa, Taboão da Serra, São Paulo, 1983. Atriz, cantora e diretora. Sua atuação se caracteriza pela valorização poética das periferias paulistanas e da presença negra no cenário cultural. Ao longo de uma década e meia, Naruna se firma no mundo artístico brasileiro graças ao impacto político e estético de seus trabalhos em teatro, televisão, cinema e música. Suas escolhas de personagens ilustram a resistência à opressão social e aos abismos econômicos do país. Formada na EAD – Escola de Arte Dramática ECA/USP/2009, Naruna é Co-fundadora do Espaço Clariô Taboão da Serra e do premiado Grupo Clariô de Teatro, referência da militância negra de cultura periférica de SP, também lidera o grupo de pesquisa de música urbana de raiz popular: “Clarianas”, com dois discos autorais gravados: “Giradêra” em 2012 e “Quebra Quebranto” em 2019. No audiovisual, Naruna atualmente protagoniza a série “Irmandade” da plataforma de streaming Netflix, onde vive a intrigante advogada Cristina. Em 2018, a atriz e diretora foi a primeira negra a receber o “Prêmio APCA”, na categoria Melhor Direção, pela montagem do espetáculo “Buraquinhos – ou – O Vento é inimigo do Picuma” de Jonny Sallaberg, categoria pela qual também foi premiada pelo Prêmio Aplauso Brasil/ Júri Popular 2018. Naruna também foi premiada na categoria Melhor Atriz, em 2020 por sua atuação no filme “Toro” de Eduardo Felistoque no VI FBCI Festival Brasileiro de Cinema Internacional.